Dos Santos

terça-feira, junho 23

-Prazer, meu nome é Robson Dos Santos.

-Prazer, Paola Lorenzetti

Não acredito. Não acredito que ela olhou para mim. Não acredito que esses olhos azuis sejam reais. Não acredito nesse sorriso, não acredito que seja para mim. Não acredito que tive coragem de falar meu nome. Não acredito que tive coragem de falar meu nome verdadeiro!
O que ela deve ter achado de mim?
Será que ela está brincando comigo? Será que esse é mesmo o nome dela? Será que...

-Algum problema, rapaz?
-Não não, é que...
-Então, Paola Lorenzetti, prazer.

Idiota. Uma linda garota como essa me dando bola e eu aqui, duvidando do seu nome de chuveiro...

-Chuveiro!
-Hã?
-Chuveiro... Lorenzetti! Seu pai é o dono da fábrica, é?

Chuveiro? Como fui pensar nisso? Como eu consegui falar que ela tem nome de chuveiro? Como consegui perguntar se o pai dela é o dono dos chuveiros Lorenzetti?
Olha só a cara dela agora! Não é das melhores... não mesmo. Parece que vai soltar um vapor quente, igual ao chuveiro lá de casa. Não... olha a cara dela. É claro que ela nem sabe o que é um chuveiro Lorenzetti. Uma garota desse nível nunca conheceria um chuveiro "Lorenzetti", igual aquele que tenho lá em casa... Aposto que ela tem um chuveiro de uma marca muito melhor.

-Hahahha. Chuveiro?
-Desculpe, é que...
-Não precisa se desculpar, todos meus amigos me perguntam isso. O problema é ser reconhecida toda vez que digo meu sobrenome, as vezes enche, mas... E sim, o meu pai é o dono da fábrica de chuveiros!

Fantástico.
Quem foi rei nunca perde a majestade. Eu, que sempre consegui qualquer garota do bairro, agora estava alcançando novos ares. Mulher é mesmo tudo igual. Sejam as Lorenzettis, as Rayannes ou as Joyces do bairro, é tudo igual.
E quem diria, ein? Eu, com aqueles R$14,90 acabei comprando um chuveiro de rico, da mesma marca usada pelos amigos ricos dela.

-E você, Sr. Dos Santos? De onde herdou esse sobrenome?
-Ah, também herdei o sobrenome do meu pai. Ele era jogador de futebol.

Excelente.
Apesar de ainda continuar falando a verdade, estou me dando muito bem. Talvez eu não seja tão pé rapado quanto imagino.

-O Dos Santos? Jogador do Nacional? Que legal...
-É, é sim... Jogou muita bola o meu pai.
-Eu sei. Mas deve ter sido uma dureza...
-É. Claro que o futebol daquela época era bem diferente, mas o meu pai sabia o que fazer com uma bola nos pés.
-Claro. Mas quis dizer que sua família deve ter passado muitas dificuldaes financeiras. O salário de jogador nos anos 70 não era muito bom.

Merda.
Como ela sabe de tanta coisa? Aliás, uma patricinha como ela, nunca deveria saber nada sobre futebol. Muito menos sobre o salário do meu pai. Será que ela...

-Robson? Tudo bem com você?
-Hã? Ah, sim. É que...
-É que as vezes você fica no mundo da lua! Hahahaha
-Coisa de publicitário.
-Hah, você faz publicidade?
-Sim, sim! Achei que já tivesse te falado sobre isso.
-Não! Mas isso é lindo! Eu também faço publicidade... Mas confesso uma coisa, nunca te vi na faculdade! E olha que já estou no sexto período!

Merda, merda, merda.
Estava indo tão bem. Por que fui inventar de mentir logo agora? Não acredito.
Não acredito que fui xavecar logo uma Lorenzetti. Não acredito que uma garota possa entender de futebol dos anos 70. Não acredito que tentei enganar uma publicitária. Não acredito naquele sorriso, naqueles olhos... Não acredito que ela ainda conversa comigo!

-Paola, diga logo: o que você quer de mim?

-Tá bom. Sei como é difícil enganar quem faz publicidade. Mais cedo ou mais tarde, descobrimos tudo. Por falar em mais tarde, estarei livre hoje a noite. Que tal sexo sem compromisso? Te espero na faculdade.

domingo, junho 21

Seu altar, ainda te maldiz
Sua mentira, ainda condiz

Meu olhar, ainda te socorre
Meu whisky, ainda te escorre

Nosso amor, ainda existe
Nossa lembrança, ainda emite

Seu colo, ainda me aguarda
Sua boca, ainda amarga

Minha arma, ainda fala
Minha poesia, ainda falha

-

Ainda que te suceda,
Ainda que te entardeça,
Ainda que te veja,

Ainda te amarei.

Um Funcionário Público, Parte 2

terça-feira, março 31

Missão dada é missão cumprida.
Com a sugestão do bundosíssimo Sr. Sálmeron, aceitei a tarefa de escrever a segunda parte de "Um Funcionário Público", que pode ser conferido na íntegra no seguinte link: http://bloganomalo.blogspot.com/2009/03/um-funcionario-publico.html

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O conceito de "ajeitar" é mesmo ajeitável. E a fascinação por ajeitar as coisas me fez tentar medicina durante aquela fase de minha vida que eu não me importava de não viver.
E olhem, depois de tantos anos, até ajeitei um jeito de voltar a ser o jovem adolescente desajeitado e cheio de espinhas que sonhava em ser médico.

Dessa(s) vez(es) eu iria passar.

(...)

Mais uma véspera de vestibular para medicina havia chegado. Senti-me diferente dessa vez. Parecia que eu havia mudado de time. Não estava no banco de reserva, como a maior parte da minha vida, mas agora eu tinha a morte como aliada, diferentemente dos possíveis futuros companheiros de profissão.

Vestibular, vestibular, vestibular. Situação que todos médicos deveriam vencer com facilidade.

Mas confesso, mesmo com tantos fracassos, eu sabia que um dia meu dia chegaria. Sempre encarei o vestibular como a morte, na hora certa, ele chegaria.

Morte, morte, morte. Situação que todos os médicos deveriam estar preparados para enfrentar. Talvez minha frieza e maturidade para lidar com a situação fizessem de mim um grande médico. Talvez um ícone, um guru, um mestre da medicina mundial.
Modéstia a parte, consegui superar com facilidade o falecimento de minha mulher e meus dois filhos. Eu percebia que faltava certa afinidade da medicina com a morte e precisava fazer algo para colocar tudo na ordem natural da vida.

A morte sempre fora tratada como inimiga da medicina, um mal a ser combatido e evitado. A morte certamente é inevitável, mas sempre chega apenas para os que a merecem.
Olhem para mim! Hoje sou feliz, sem mulher e sem dois filhos. Graças à morte.

Como homem, eu precisava lutar pela morte e garantir que meu agradecimento seria completo.

(...)

Final de dezembro.
Mais um resultado do vestibular de medicina era divulgado.

E aquela sensação de diferença parecia ter me enganado. Ou talvez fora outro sinal divino.

120° excedente.

Nada mal, se comparado às últimas tentativas, mas ainda não era o suficiente.

Mas não existe nada nesse Universo que seja obstáculo para a gloriosa morte.
A morte, ou 119 dela, colocaria tudo no seu devido lugar.

(...)

Sete anos depois, chegava a hora de agradecer pelas graças recebidas.

Após passar naquele concurso público com 0,2 candidato por vaga, finalmente eu poderia trabalhar como médico do Sistema Único de Saúde.

Embora tenha voltado a ser um funcionário público, eu sentia que minha honra estava sendo dignificada a cada dia.

O governo e meus companheiros de trabalho já não se importavam tanto em combater a morte. Não sei se cheguei a exercer tanta influência, mas com passar dos anos, percebi que a morte se tornava cada vez mais aceitavél.

Tudo perfeito.
Agora poderia deitar em minha cama todas as noites às 23h15 e adormecer com a consciência de ter o dever cumprido.

A Semana de Morte de Evandro Augusto

segunda-feira, março 30

Eu sabia que os jovens de quinze anos de hoje não são fãs de leitura, embora soubesse que minha filha era uma leitora assídua de toda revista "teen".
E lembrava da época que tinha a idade dela, quando lia um livro por semana e daquela conversa inesquecível com minha mãe, quando descobri que Ricardo Reis, na verdade, não era Ricardo Reis.

Eu não sabia o que minha filha andava assistindo na TV, mas ela sempre assistia.
No fundo eu queria mesmo que tudo fosse assim, e que ela fosse feliz por mais um tempo.
Eu sabia que isso poderia atrasar a formação de seu caráter, mas eram tempos de vacas magras e eu precisava trabalhar. A tv fazia bem o papel de mãe provisória.

Além do mais, na tv de hoje até se passa uns programas educativos sobre sexualidade, assim ela certamente não engravidaria tão cedo.

Mas era só uma questão de tempo, uma questão de férias, e chegaria aquele dia que eu sempre soube que chegaria: o dia de uma conversa-de-mãe-para-filha.

(...)
Mãe, liga a tv no canal 9, liga no 9! Liga! Liga! Liga!

'O ator Evandro Augusto, que interpreta o papel do mocinho Alexandre na atual novela das oito, foi internado hoje em uma clínica de reabilitação para viciados em cocaína. Evandro Augusto ficará afastado do elenco da novela por tempo indeterminado. Seu estado de saúde é grave. A família não quis se pronunciar sobre o assunto.'

Os dias da tv como mãe provisória estavam contados.
Pelo andar da carroagem, minhas férias viriam antes do previsto, e o amanhã seria um dia de festa no escritório. Mal conseguia esperar pelo momento de ir para cama e acabar meu livro.

Parecia que finalmente a ficha do editor-chefe tinha caído, e ele teria arranjado mais um de seus métodos malucos para interferir no andamento crônico e cósmico do Universo.

Já não aguentava mais revisar meu livro e criar capas diferentes toda semana. Como eu diria, a biografia póstuma de Evandro Augusto já estava 'pronta' há muito tempo.
Só faltava o último capítulo, do qual todo mundo sabia o final, mas eu não poderia alcançar o clímax sem umas devidas preliminares.

Aliás, ninguém mais aguentava Evandro Augusto.
O pessoal do longa-metragem (o qual era baseado no meu livro) já estava pensando em convidar o futuro Evandro Augusto Jr. (Que ridículo! Como se alguma mãe tivesse tanta coragem para castigar o próprio filho) para interpretar o pai no cinema.
A galera do documentário já estava morrendo de medo do começo da nova temporada do campeonato de futebol. Apesar de todo esforço, não seria fácil conseguir uma horinha livre nas quartas a noite. Mais algumas semanas de resistência persistente de Evandro Augusto e teriam que se contentar com um horário no domingo a tarde.

A semana da vitória estava chegando.
Anos e anos de trabalho seriam finalmente recompensados, e cada companheiro poderia sentir o gosto da glória nas páginas e tomadas da digníssima mídia nacional.

Evandro Augusto entraria na eternidade semanal das memórias do povo.

E Clarisse Magalhães, autora da Biografia Póstuma de Evandro Augusto, teria tempo e dinheiro suficiente para educar sua filha longe de televisões.

(...)

Filha, eu sempre soube que esse dia chegaria.
-Como assim? Esse é o pior dia da minha vida! Você não viu a tv? Evandro Augusto... em uma clínica de reabilitação para viciados em cocaína!
Filha, não se desespere... Sei como são essas coisas, ainda me lembro de quando descobri a verdade sobre Ricardo Reis...
-Ricardo Reis? Quer dizer que não sou filha do Ângelo Nogueira?
Claro que é filha! Não seja tola, até parece que não conhece Ricardo Reis.
-E você até parece que não conhece Evandro Augusto!
Hahaha! Você está insinuando que Clarisse Magalhães não conhece Evandro Augusto?
-Isso que você ouviu!
Ah filha... então diga para sua pobre e desinformada mãe: Quem é Evandro Augusto?
-O futuro pai de Evandro Augusto Jr.! Este presente de Deus que carrego em minha barriga e tornará a memória de Evandro Augusto imortal, independentemente do que aconteça!

Hoje foi as 3

domingo, março 22

-Hoje foi as 3, cara. Nossa, nem dá pra acreditar... Achei que esse dia nunca chegaria, mas como meu pai me diria, é preciso estar sempre pronto para essas horas decisivas na vida de um homem.

Cretino.

Sei que tinha prometido pra ele e para mim mesma que nunca mais ficaria na escuta do telefone, mas essa seria a última vez. Última vez mesmo, porque terminaria tudo com esse canalha.
É, eu poderia aproveitar essa situação para terminar tudo de uma vez. Mas aí me lembro que foi esse mesmo o motivo da nossa primeira briga (e o da segunda foi a minha curiosidade ao telefone).
O desgraçado nunca acerta o uso de "foi e foram". E não conseguir acertar até hoje seria um bom motivo para outra briga, mas essa seria pra valer. Ou será que ele se arrependeu e finalmente aprendeu a usar os fois e os forams? Ah! Outro motivo para terminar pra valer! E dessa vez não teria nada de "amor, não é nada disso que você está pensando..."
Seria mesmo o que eu tava pensando, ele chegou mais cedo no escritório para pegar aquelas 3 secretárias vadias.

(...)

Parece destino.

Às 14 h de hoje eu estava com uma sensação estranha. Ter sensações estranhas nessa altura do campeonato não me dava nenhum entusiasmo. Ou seria preocupações com dívidas ou com as briguinhas de casal recém-casado que não se aguentava mais depois de 2 meses. Até trabalhar em pleno sábado seria melhor.

O sol parecia irresistível visto daquela mesa do escritório. Perfeito para as peladas de sábado no clube, que estavam sendo adiadas a vários sábados por causa da chuva. Mas sábados de chuva me deram o custume de esquecer a chuteira em casa, e voltar pra pegá-las sem ser visto por minha mulher não seria uma tarefa fácil. Era melhor aguentar a marcação cerrada do chefe.

-Artur, pegue sua maleta e vá até a minha sala às 3h. Teremos uma reunião.

Maldita sensação. Até os sábados de chuva e briguinhas de casal eram melhor do que reunião de empregados mal-remunerados.

O escritório que já era parado nos sábados parou por alguns segundos e ficou olhando para mim.

E o Freitas, o maldito Freitas sempre resolvia perguntar alguma coisa para se fazer de interessado para o chefe.

-Chefe, mas a reunião de sábado às 3h não era apenas para o presidente e vice-presidente?

-Justamente, Freitas. Justamente.

Agora eu poderia demitir o Freitas da empresa e minha esposa de casa, além de contratar secretárias mais bonitas.
Eu deveria mesmo ter seguido as recomendações do meu irmão e não ter aceitado a maldita divisão total de bens, mas eu considerava maluco, por ser a única pessoa no mundo que acreditava na minha ascensão profissional. Quem me dera uma demissão dessa profissão de marido por justa causa...

Aliás, preciso ligar para o maluco do meu irmão e falar sobre o dia de hoje.


-Artur.
-Diga, amor.
-Amor??? Seu cínico! Descarado! Crápula! Esdrúxulo! Vagab... NÃO TEM MAIS JEITO, ESTÁ TUDO TERMINADO ENTRE NÓS!
-Seja feita a Vossa Vontade, amém.

Pernilongo, bicho estranho.

Pernilongo, bicho estranho.
Já são quatro. Quatro marcas de pernilongo no meu rosto. Quanto tempo faz? Uns quatro dias? Talvez. Não lembro.
Há quanto tempo veio a primeira marca? Será que vieram duas ou três de uma vez só? Mas agora são quatro, aí eu percebi.
E são quatro marcas muito próximas. Vai entender. Será que significa que apenas um pernilongo me deixou quatro marcas? Um só? Ou quem sabe dois, três, quatro... E por que tão próximas?
Tenho um rosto tão grande, uma cabeça tão grande. Por que tão próximas? E ainda poderiam se aventurar pelo resto do meu corpo, esse não é muito grande, eu sei, mas poderiam. Agora tenho mesmo que aceitar as quatro marcas no meu rosto?

Pernilongo, bicho estranho.
Vai entender.
Mas deve ser muito chato entender sobre pernilongos. Não me interessa nenhum pouco. E será que eles entendem algo sobre mim?
Será que sabem como me intrigar? Será que me deixaram quatro marcas porque me odeiam ou por que me amam? Por que me deixaram quatro marcas? Será que se interessaram por mim quando eu não tinha marcas? Ou se interessam mais agora, que tenho quatro? Tomara que não, pois aí viriam a quinta, a sexta, a sétima e infinitas marcas.

Ou tomara que sim? Será que transmitem alguma doença? Ou quatro? Será que estou doente? Será que eles estão doentes e isso explica as quatro marcas tão próximas? Será que posso descobrir alguma doença? Será que existe pernilongofobia? Será que isso é coisa de horário, da estação climática, fase da lua, ou vegetação da região? Ou será tudo isso só uma piração minha?

Homem, bicho estranho.

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Texto escrito em 17/02/09.
P.S.: Ainda tenho uma marca do(s) tal(is) pernilongo(s)(?) no rosto.

Parada do Orgulho Vegetariano - Parte 2

sábado, março 14

-Irmão, onde vai com essa chave? Pra quê tanto ódio no seu coração? Junte-se a nós e venha lutar contra o verdadeiro inimigo: a carne.
-A carne? Pô! Achei que o Nacional iria jogar contra o Juventus! Aqueles verdinhos teriam a vingança que merecem...
-Isso irmão! Também acredito que a força está na juventude deste país.
-Ô seu doidão, olha aqui. Acho que tá acontecendo algum engano. Eu só vim aqui pra assistir o jogo do Nacional. Vocês poderiam sair da frente ou tô pedindo muito?
-Isso irmão! Ali na frente! O bandeirão verde está vindo!

E lá estava Fábio embaixo do bandeirão verde, e uma equipe de TV transmitindo-o ao vivo para todo país.

E a mulher pê da vida por causa de mais uma interrupção no programa de culinária, deixou os ovos, a pitadinha de sal e as 2 colheres de sopa de farinha de trigo caírem ao chão por conta de tanta emoção.

-Nossa, não é que o Fábio está mesmo na Parada do Orgulho Vegetariano? E eu achando que ele estava mentindo pra mim... Como eu sou boba!

-Ô cambada de maluco! Digo, digo... Deve estar acontecendo algum engano, eu só queria estar vendo o Nacional jogar agora.
-Isso irmão, vamos nos jogar! Se jogue contra esse sistema capitalista egoísta e especista e lute por uma sociedade igualitária!

Fábio estava perdido.
Estava tão perdido debaixo daquele bandeirão verde quanto estava perdido nas aulas de biologia do 1o ano. Fábio achava que possuir conhecimentos sobre o tipo de reprodução dos vegetarianos nunca lhe traria alguma utilidade; ledo engano.

Fábio tinha suas meia dúzias de prevenções em relação a contato físico com seres do sexo masculino, mas ali, sozinho no meio daquela multidão, ele decidiu se render e aceitar a idéia de que encostar em outros homens não seria sinal de doença incurável altamente contagiosa pré-mortal adquirida. Ledo engano, Fábio!

Deveria mesmo ter estudado mais biologia, ou ter assistido aqueles documentários sobre o comportamento exótico sobre faunas exóticas no canal da TV a cabo.

Os vegetarianos estavam ali, com estratégias maquiavélicas debaixo de suas máscaras, prontos para a dominação mundial e dispostos a se reproduzir com o primeiro que encontrassem pela frente.

Fábio estava cercado por aquela espécie, e só conseguia se lembrar de que se estivesse no inferno, deveria abraçar o capeta.

Fábio estava completamente contagiado pelo espírito verde do amor e da fraternidade, e decidiu abraçar cada vegetariano da Parada durante as 4 horas que ficou ali gritando e balançando bandeiras em nome do equilíbrio espiritual das espécies.

E desde então não se lembra mais de nada.

Mas todos os dias estuda sobre cissiparidade para tentar explicar para sua mulher como apareceram tantos Fábios pela cidade.

O Dia de Diego

quarta-feira, março 11

No alto do segundo andar, lá no fundo do bloco da esquerda ficavam as salas do primeiro ano.
No canto esquerdo de uma das salas, bem junto à parede, ficava Diego, o garoto raquítico e sabe-tudo da classe.
Diego ficava sentado ali durante (quase) a aula inteira. Não que precisasse aprender algo naquela escola, ele simplesmente ficava esperando seu amor passar.

A garota do terceiro ano! Tão loira, tão formosa, tão mal-famosa, tão gostosa.
Mas com tantos adjetivos assim, não poderia ser uma garota. A loira do terceiro ano era uma mulher.(E que mulher!)
Religiosamente, todos os dias, faça matemática ou faça português, a mulher saía de sua classe a cada um horário e meio.
Atento a isso desde a primeira vista ao seu amor, Diego sabia que a temporada de caça estava aberta.
Temporadas de caças fazem parte do Verão, e como se tem sede no Verão! E Diego estranhamente tinha sede a cada um horário e meio. Uma sede estranha, que não poderia ser cessada no bebedouro do segundo andar. Precisava ser aquele lá do primeiro andar, aquele bem antigo, que saía apenas algumas gotas de água quente quando estava de bom humor. Mas era aquele o melhor de todos, porque era o bebedouro ao lado do telefone público.

E como era quente aquele telefone público nas mãos, ouvidos e lábios carnudos da mulher do terceiro ano. E o coitado nunca conseguia tempo para se esfriar, logo logo passaria mais um horário e meio e a mulher voltaria.

"Rodrigo, Bruno, Raul, Michael, Fabiano, Francisco, Alexandre, Sr. Otávio, Irênio, Vandercleysson, Karl, Mohamed, Di... ogo"

Tantos homens, nenhum Diego.

Após 3, 4 ou 5 minutos, a mulher desligava o telefone e sempre partia em direção ao banheiro, onde ficava por mais 2 minutos até fazer questão de soltar um estridente grito que Diego definia como uma manifestação de arte e satisfação.
Após o grito, a mulher saía tranquilamente pela porta da frente como se nada tivesse acontecido, e com uma cara de quem está pronta para o próximo um horário e meio. E Diego rapidamente se escondia -não poderia deixar pistas sobre sua leve queda por ela- e voltava em direção a escadaria que levava às salas de primeiro ano.
"Quando chegará meu dia?" Diego sempre se perguntava. Aliás, Diego tinha muito a se perguntar durante os 3,4 ou 5 minutos que ficava ali a cada um horário e meio.


"Meu Deus! O que essa mulher faz da vida? Será que trabalha para alguma empresa de sexo por telefone? Será que passa trotes? Será que é telefonista de algum tipo de telemarketing sexual? Ninfomaníaca?
Não sei. Só sei que é a mulher perfeita. Terceiro ano, loira, pré-universitária, lábios macios, sorriso provocante, seios simétricos, que MULHER!
Até o fim do ano eu descubro o que ela faz da vida, e aí vai ser só alegria. Até o fim do ano eu pego ela! Oh se pego! O meu dia vai chegar."

E vieram as águas de Março fechando o verão, e no mesmo ritmo passaram-se as águas de abril, maio, junho... novembro, dezembro -pausa para acabar o ano- janeiro, fevereiro...

Talvez Diego tenha perdido todo seu primeiro ano mergulhado nas suas várias idas ao bebedouro e pensamentos mirabolantes, e com isso tenha se esquecido de coisas fundamentais, como perguntar o nome da garota e de que o terceiro ano é o último ano de escola.

Nos primeiros dias de aula do segundo ano, Diego era um desespero só. Ficava ali primeiramente no horário como de custume, e depois começou a se prorrogar. Ficava durante uma hora, duas... durante a aula inteira!
Mas nenhuma mulher aparecia ali para telefonar...

Em um ataque de loucura, Diego quase arranca o telefone para fora da parede, e era o que ia fazer, até que descobre um único nome carinhosamente anotado canto do telefone.
"Flávia... 9966-3526"
Só poderia ser ela, ela era a única que usava o telefone! Ahh... era a mulher do terceiro ano!
Diego desesperadamente tenta ligar para o número várias vezes, mas nada. Nada funcionava.

Só lhe restava ir bufando até a diretora para reclamar!

-Diretora, aquele telefone perto do bebedouro parece estar estragado! Preciso urgentemente fazer uma ligação e ele não funciona, é um absurdo!
-Claro que está estragado, garoto. Está estragado há 5 anos!

Os dias de Diego haviam se passado.

Acordar, é possível?

quarta-feira, fevereiro 18

Em tempos de alerta em sistemas capitalistas como este, permanecer acordado é a principal recomendação dos especialistas. Há quem diga que não podemos fazer dinheiro enquanto dormimos, e logo, deveríamos permanecer sempre acordados se quisessemos dinheiro para permanecemos acordados. Mas fisiologicamente, não dormir é impossível(tá explicada a razão da crise).

Sim, ponto final.
Tudo se encaixa e tem um final feliz.
Mas sempre me pergunto quando acordado: Acordar, é possível?

Confesso, não me lembro da última vez que acordei. Aliás, não sei se algum dia nesses milhões de trilhões de anos do universo, algum ser vivo tenha acordado.
É claro que o ser humano (aquele mesmo que inventou coisas como guerras, matemática, funk, exame de próstata e Yoko Ono) insiste em criar agentes acordadores, blasfemando contra suas próprias necessidades fisiológicas.

Despertadores, celulares, cachorros, mães, vestibulares, vizinhos, vizinhos que escutam sertanejo, motoristas de ônibus, entre outros, parecem constituir uma verdadeira máfia escondendo um dos segredos das necessidades fisiológicas humanas.

Acordem! Não é possível acordar.
Será difícil provar isso, eu sei. Os inimigos são muitos e eu não sei compor músicas de três acordes para alcançar a juventude deste país.
Bem, talvez eu até consiga algo escrevendo, mas me exigiria muito tempo acordado.

Parada do Orgulho Vegetariano - Parte 1

segunda-feira, fevereiro 16

"Acontecerá no próximo domingo a quinta Parada do Orgulho Vegetariano municipal. Desta vez a parada ganhará status de movimento internacional, graças a presença do líder do vegetarianismo mundial, Paulo Raio-de-Sol.
Segundo o organizador do evento, Jorge Luz-do-Luar, a parada também prestará serviços à comunidade carente, como a emissão de carteiras de identidade e de cpfs, cortes de cabelo, teatro de bonecos para as crianças, além de exames de glicose e...

-Merda. Não aguento mais esse canal. Vô colocar no futebol.
-Fábio! Seu sem educação... não tá vendo que eu tô assistindo?
-Ah, pra que ver essa merda de jornal? O jogo do Nacional é muito mais importante.
-Seu seu... machista! Será que pelo menos uma vez você poderia pensar em MIM?
-MACHISTA NÃO! Você sabe que odeio quando me chama assim!
-Ah não, é? O que você é então? Estou cansada de sua intolerância! Sabe o que você deveria fazer? Frequentar uma dessas paradas vegetarianas pra ver se consegue ser um pouco mais sensível...
-Então é isso que você quer? É isso que terá! Estou cansado dessas brigas na hora do jogo. A hora do jogo é hora sagrada, pô! Mas como eu disse, se é isso que você quer, eu vou na tal parada vegetariana.
-Ahh Fábio, você faria isso por mim?
-Não só faria como VOU fazer.

E fui logo pegando a chave do carro, vestindo minha camisa de flanela verde e um calçando um All Star estraçalhado dos meus tempos de adolescente. Mas é claro, vesti minha camisa do Nacional por baixo.

-Amor, estou indo. Daqui a alguns minutos você poderá ligar a tv e me assistir no meio da parada. Me procure debaixo de um bandeirão verde, estarei lá.

Idiota. É incrível como as mulheres são idiotas! Eu numa "Parada Vegetariana"? Ah.. tenha dó! Ainda mais em pleno domingo de futebol.
E eu, esperto como sou, mato dois coelhos com um tiro só. Resolvo essa parada e ainda aproveito pra ver o Nacional no estádio. Quanto tempo não vou ao estádio! Deve ter uns 15 dias.

[...]

Que saco. Esse trânsito perto do estádio em dia de clássico fica impenetrável.
Peraí, hoje não é dia de clássico!
Que merda é essa desse trânsito? Aposto que alguma mulher bateu o carro ali na frente.
Mas tá pra nascer alguém que vai me fazer perder o jogo do Nacional! Vô pegar a chave de roda e resolver do meu jeito.

Caminhei com a chave na mão por alguns metros.

O que é isso? Que merda é essa desse monte de gente de verde? Será que é a torcida adversária? Pô, eu nem tava sabendo que o jogo era tão importante... Haha... esse vai ser um jogaço! Mas se algum desses verdinhos vierem pro meu lado vai tomar chavederodada na cabeça!

Mas não era torcida adversária. Era a Parada do Orgulho Vegetariano.

Jurandir's House of Horror XIII

sexta-feira, fevereiro 13

Olá.
Meu nome é Emanuel, e hoje teria 35 anos se ainda me sentisse vivo. Não se assuste, ainda não estou morto, mas é que fazem 10 anos que eu não me sinto mais completo.

Como eu diria, há 10 anos atrás, minha vida de historiador era fascinante. Saía pela cidade afora tentando compreender um pouco da história de cada canto, mesmo que fosse um pacato bairro sem graça.

Cada canto era especial, mas um bairro tinha algo a mais: O Bairro Velho.
Cada rua, cada casa, cada cubículo comercial, cada morador possuía uma história surpreendente até mesmo para mim, que vivia para ouvi-las.

Mas hoje, quem tem uma história daquelas difíceis de se acreditar, sou eu.

O Bairro Velho intrigava a todos moradores da cidade, e ainda mais os historiadores.
Velhas lendas e mitos formavam a fama do lugar. Mas um historiador de 25 anos que se preze, não deveria temê-las.

A economia do bairro parecia não se movimentar, era intacta como vida de cada morador. Era difícil acreditar que pessoas como aquelas conseguiam sobreviver em uma cidade com elevado padrão socio-econômico.
O bairro parecia parado no tempo. Talvez estivesse parado a séculos atrás, numa espécie de feudalismo. E talvez tenha sido isso mesmo o que aconteceu. Séculos e séculos parados no tempo, graças aos caprichos do Rei Jurandir.

Jurandir era um gordo velho com aparência simpática e empatia inegualável. Pelo menos isso era o que os "estrangeiros" achavam sobre ele.
Mas para os velhos súditos moradores do Bairro Velho, Jurandir era como um rei.

Um rei diferente, não possuía castelos e carroagens, e sim uma pequena casa com alguns ônibus a cada 25 minutos. E era justamente com isso que ele conseguia manter o seu reino.


"Oi tudo bem?
-Sempre...
O senhor mora por aqui?
-Moro aqui.
Bom... e o senhor poderia me informar a que horas passa o próximo ônibus para o centro?
-Claro. Mas você não gostaria de entrar e tomar uma xícara de café?"

Após meu primeiro contato com o Bairro Velho e posteriormente com Jurandir, achei que poderia voltar a minha casa com conceitos diferentes sobre os que se ouviam sobre o Bairro Velho.

"Ah, claro que sim. Seria uma honra!"

E talvez tenha sido mesmo uma honra, a honra de ter deixado de ser um historiador e virar mais um bobo no reino de Jurandir.

Após aquele primeiro passo dentro da casa de Jurandir, o mundo se fechou, assim como todas as portas e janelas daquele lugar aterrorizante. Todas as luzes se apagaram, e tentei inutilmente refazer o caminho até a porta de entrada, mas apenas pude sentir um empurrão que bruscamente me fez cair no chão.

"Seu Jurandir? O que é isso? Tudo bem com você?"
-Muhahahaha!

E Jurandir começou a me fazer acreditar que as lendas eram mesmo verdadeiras, e o pesadelo tinha se tornado real. Tudo começava a fazer sentido.

O bar do bairro servia apenas sangue. A padaria vendia os próprios sonhos das vítimas. O açougue, é claro, vendia carne humana. E o armazém se encarregava de vender todo o resto.

"Vpppppt!"
Um machado veloz havia decepado a minha cabeça.

E logo as minhas partes seriam distribuídas pelo bairro.

Mas ser historiador tem seus lados bons...
Somos indigestos, não somos sangue-bom, e vivemos sem sonhos. Assim não nos resta mais nada.
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Feliz sexta-feira 13! :)

Jurandir do Ponto de Ônibus

quinta-feira, fevereiro 12

Jurandir do ponto de ônibus era um peculiar morador daquele bairro pacato e sem graça da cidade. Sua vida baseava-se em passar a noite inteira dentro de casa, e o dia inteiro a dois metros do lado de fora, onde considerava que tinha seu próprio ponto de ônibus.
Muitos velhos aposentados do bairro tinham seu próprio negócio: um armazém, um bar, uma padaria ou um açougue. Mas Jurandir se considerava o velho mais importante do bairro, tinha seu próprio ponto de ônibus.

A paixão de Jurandir por ônibus era inquestionável, mas todos se surpreendiam quando descobriam que ele não possuia nem uma mísera e tão comum carteira de habilitação do tipo B.
E o que falar sobre tanto conhecimento sobre ônibus? Ele conhecia cada peça de um ônibus e suas funções, e muitas vezes conseguia identificar um possível defeito e apontar a sua solução. Mas diploma e experiência de mecânico? Mal conseguia consertar uma bicicleta...

Jurandir era grande como um ônibus. Parecia que sempre caberia mais um naquela barriga enorme. "Espaço para 44 frangos sentados e 36 em pé".
Não era por menos, Jurandir não praticava esportes a algumas décadas, e não se sentia atraído pela vida a pé. Darwin diria que era apenas adaptação ao meio, e os publicitários diriam que seria apenas marketing, um "passaporte" para sua vida social.

Mas tudo isso seria irrelevante. O importante é que as pessoas (darwinistas, publicitários ou simples mortais) não resistiam a Jurandir. Aquele velho gordinho que ficava sentado o dia inteiro era uma enciclopédia sobre empatia e informações onibusuárias.

Jurandir tinha sua própria e fiel freguesia:
Trabalhadores que religiosamente, de segunda a sexta-feira, embarcavam logo cedo para trabalhar em bairros distantes.
E os estudantes, de segunda a quinta-feira (certamente o custume de pegar ônibus nas sextas não era comum entre os estudantes, que preferiam matar aula na praça do bairro), mas Jurandir sempre estaria lá.

Mas Jurandir também tinha seu alvo preferido: os novatos. Era um defensor dos fracos e oprimidos. Seu coração sempre se derretia ao avistar um pobre e perdido estranho, precisando de ajuda e informações.
Mas Jurandir era uma bússola! Um relógio, um mapa, um serviço de atendimento ao consumidor, um guia turístico e ultimamente havia se transformado em um GPRS.

"Oi tudo bem?
-Sempre...
O senhor mora por aqui?
-Moro aqui.
Bom... e o senhor poderia me informar a que horas passa o próximo ônibus para o centro?
-Claro. Mas você não gostaria de entrar e tomar uma xícara de café?"

E lá se ia mais um "estrangeiro" -como Jurandir gostava de chamar os pobres e perdidos estranhos- encantado por um bairro tão acolhedor.

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Em breve falarei mais sobre Jurandir. Só postando esse rascunho pra "entrar em forma" outra vez. Abraços :)

E Agora?

domingo, janeiro 18

E agora?
Meu livro na sala, e um velho amigo da família também.
Entrar e ouvir histórias de 40 anos atrás não parece ser tão agradável quanto ler as histórias de 50 anos contadas em um livro.

O medo é mesmo capaz de mover o homem.
Ou simplesmente fazê-lo inerte.

Me tranco no quarto e começo a escrever.