Acordar, é possível?

quarta-feira, fevereiro 18

Em tempos de alerta em sistemas capitalistas como este, permanecer acordado é a principal recomendação dos especialistas. Há quem diga que não podemos fazer dinheiro enquanto dormimos, e logo, deveríamos permanecer sempre acordados se quisessemos dinheiro para permanecemos acordados. Mas fisiologicamente, não dormir é impossível(tá explicada a razão da crise).

Sim, ponto final.
Tudo se encaixa e tem um final feliz.
Mas sempre me pergunto quando acordado: Acordar, é possível?

Confesso, não me lembro da última vez que acordei. Aliás, não sei se algum dia nesses milhões de trilhões de anos do universo, algum ser vivo tenha acordado.
É claro que o ser humano (aquele mesmo que inventou coisas como guerras, matemática, funk, exame de próstata e Yoko Ono) insiste em criar agentes acordadores, blasfemando contra suas próprias necessidades fisiológicas.

Despertadores, celulares, cachorros, mães, vestibulares, vizinhos, vizinhos que escutam sertanejo, motoristas de ônibus, entre outros, parecem constituir uma verdadeira máfia escondendo um dos segredos das necessidades fisiológicas humanas.

Acordem! Não é possível acordar.
Será difícil provar isso, eu sei. Os inimigos são muitos e eu não sei compor músicas de três acordes para alcançar a juventude deste país.
Bem, talvez eu até consiga algo escrevendo, mas me exigiria muito tempo acordado.

Parada do Orgulho Vegetariano - Parte 1

segunda-feira, fevereiro 16

"Acontecerá no próximo domingo a quinta Parada do Orgulho Vegetariano municipal. Desta vez a parada ganhará status de movimento internacional, graças a presença do líder do vegetarianismo mundial, Paulo Raio-de-Sol.
Segundo o organizador do evento, Jorge Luz-do-Luar, a parada também prestará serviços à comunidade carente, como a emissão de carteiras de identidade e de cpfs, cortes de cabelo, teatro de bonecos para as crianças, além de exames de glicose e...

-Merda. Não aguento mais esse canal. Vô colocar no futebol.
-Fábio! Seu sem educação... não tá vendo que eu tô assistindo?
-Ah, pra que ver essa merda de jornal? O jogo do Nacional é muito mais importante.
-Seu seu... machista! Será que pelo menos uma vez você poderia pensar em MIM?
-MACHISTA NÃO! Você sabe que odeio quando me chama assim!
-Ah não, é? O que você é então? Estou cansada de sua intolerância! Sabe o que você deveria fazer? Frequentar uma dessas paradas vegetarianas pra ver se consegue ser um pouco mais sensível...
-Então é isso que você quer? É isso que terá! Estou cansado dessas brigas na hora do jogo. A hora do jogo é hora sagrada, pô! Mas como eu disse, se é isso que você quer, eu vou na tal parada vegetariana.
-Ahh Fábio, você faria isso por mim?
-Não só faria como VOU fazer.

E fui logo pegando a chave do carro, vestindo minha camisa de flanela verde e um calçando um All Star estraçalhado dos meus tempos de adolescente. Mas é claro, vesti minha camisa do Nacional por baixo.

-Amor, estou indo. Daqui a alguns minutos você poderá ligar a tv e me assistir no meio da parada. Me procure debaixo de um bandeirão verde, estarei lá.

Idiota. É incrível como as mulheres são idiotas! Eu numa "Parada Vegetariana"? Ah.. tenha dó! Ainda mais em pleno domingo de futebol.
E eu, esperto como sou, mato dois coelhos com um tiro só. Resolvo essa parada e ainda aproveito pra ver o Nacional no estádio. Quanto tempo não vou ao estádio! Deve ter uns 15 dias.

[...]

Que saco. Esse trânsito perto do estádio em dia de clássico fica impenetrável.
Peraí, hoje não é dia de clássico!
Que merda é essa desse trânsito? Aposto que alguma mulher bateu o carro ali na frente.
Mas tá pra nascer alguém que vai me fazer perder o jogo do Nacional! Vô pegar a chave de roda e resolver do meu jeito.

Caminhei com a chave na mão por alguns metros.

O que é isso? Que merda é essa desse monte de gente de verde? Será que é a torcida adversária? Pô, eu nem tava sabendo que o jogo era tão importante... Haha... esse vai ser um jogaço! Mas se algum desses verdinhos vierem pro meu lado vai tomar chavederodada na cabeça!

Mas não era torcida adversária. Era a Parada do Orgulho Vegetariano.

Jurandir's House of Horror XIII

sexta-feira, fevereiro 13

Olá.
Meu nome é Emanuel, e hoje teria 35 anos se ainda me sentisse vivo. Não se assuste, ainda não estou morto, mas é que fazem 10 anos que eu não me sinto mais completo.

Como eu diria, há 10 anos atrás, minha vida de historiador era fascinante. Saía pela cidade afora tentando compreender um pouco da história de cada canto, mesmo que fosse um pacato bairro sem graça.

Cada canto era especial, mas um bairro tinha algo a mais: O Bairro Velho.
Cada rua, cada casa, cada cubículo comercial, cada morador possuía uma história surpreendente até mesmo para mim, que vivia para ouvi-las.

Mas hoje, quem tem uma história daquelas difíceis de se acreditar, sou eu.

O Bairro Velho intrigava a todos moradores da cidade, e ainda mais os historiadores.
Velhas lendas e mitos formavam a fama do lugar. Mas um historiador de 25 anos que se preze, não deveria temê-las.

A economia do bairro parecia não se movimentar, era intacta como vida de cada morador. Era difícil acreditar que pessoas como aquelas conseguiam sobreviver em uma cidade com elevado padrão socio-econômico.
O bairro parecia parado no tempo. Talvez estivesse parado a séculos atrás, numa espécie de feudalismo. E talvez tenha sido isso mesmo o que aconteceu. Séculos e séculos parados no tempo, graças aos caprichos do Rei Jurandir.

Jurandir era um gordo velho com aparência simpática e empatia inegualável. Pelo menos isso era o que os "estrangeiros" achavam sobre ele.
Mas para os velhos súditos moradores do Bairro Velho, Jurandir era como um rei.

Um rei diferente, não possuía castelos e carroagens, e sim uma pequena casa com alguns ônibus a cada 25 minutos. E era justamente com isso que ele conseguia manter o seu reino.


"Oi tudo bem?
-Sempre...
O senhor mora por aqui?
-Moro aqui.
Bom... e o senhor poderia me informar a que horas passa o próximo ônibus para o centro?
-Claro. Mas você não gostaria de entrar e tomar uma xícara de café?"

Após meu primeiro contato com o Bairro Velho e posteriormente com Jurandir, achei que poderia voltar a minha casa com conceitos diferentes sobre os que se ouviam sobre o Bairro Velho.

"Ah, claro que sim. Seria uma honra!"

E talvez tenha sido mesmo uma honra, a honra de ter deixado de ser um historiador e virar mais um bobo no reino de Jurandir.

Após aquele primeiro passo dentro da casa de Jurandir, o mundo se fechou, assim como todas as portas e janelas daquele lugar aterrorizante. Todas as luzes se apagaram, e tentei inutilmente refazer o caminho até a porta de entrada, mas apenas pude sentir um empurrão que bruscamente me fez cair no chão.

"Seu Jurandir? O que é isso? Tudo bem com você?"
-Muhahahaha!

E Jurandir começou a me fazer acreditar que as lendas eram mesmo verdadeiras, e o pesadelo tinha se tornado real. Tudo começava a fazer sentido.

O bar do bairro servia apenas sangue. A padaria vendia os próprios sonhos das vítimas. O açougue, é claro, vendia carne humana. E o armazém se encarregava de vender todo o resto.

"Vpppppt!"
Um machado veloz havia decepado a minha cabeça.

E logo as minhas partes seriam distribuídas pelo bairro.

Mas ser historiador tem seus lados bons...
Somos indigestos, não somos sangue-bom, e vivemos sem sonhos. Assim não nos resta mais nada.
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Feliz sexta-feira 13! :)

Jurandir do Ponto de Ônibus

quinta-feira, fevereiro 12

Jurandir do ponto de ônibus era um peculiar morador daquele bairro pacato e sem graça da cidade. Sua vida baseava-se em passar a noite inteira dentro de casa, e o dia inteiro a dois metros do lado de fora, onde considerava que tinha seu próprio ponto de ônibus.
Muitos velhos aposentados do bairro tinham seu próprio negócio: um armazém, um bar, uma padaria ou um açougue. Mas Jurandir se considerava o velho mais importante do bairro, tinha seu próprio ponto de ônibus.

A paixão de Jurandir por ônibus era inquestionável, mas todos se surpreendiam quando descobriam que ele não possuia nem uma mísera e tão comum carteira de habilitação do tipo B.
E o que falar sobre tanto conhecimento sobre ônibus? Ele conhecia cada peça de um ônibus e suas funções, e muitas vezes conseguia identificar um possível defeito e apontar a sua solução. Mas diploma e experiência de mecânico? Mal conseguia consertar uma bicicleta...

Jurandir era grande como um ônibus. Parecia que sempre caberia mais um naquela barriga enorme. "Espaço para 44 frangos sentados e 36 em pé".
Não era por menos, Jurandir não praticava esportes a algumas décadas, e não se sentia atraído pela vida a pé. Darwin diria que era apenas adaptação ao meio, e os publicitários diriam que seria apenas marketing, um "passaporte" para sua vida social.

Mas tudo isso seria irrelevante. O importante é que as pessoas (darwinistas, publicitários ou simples mortais) não resistiam a Jurandir. Aquele velho gordinho que ficava sentado o dia inteiro era uma enciclopédia sobre empatia e informações onibusuárias.

Jurandir tinha sua própria e fiel freguesia:
Trabalhadores que religiosamente, de segunda a sexta-feira, embarcavam logo cedo para trabalhar em bairros distantes.
E os estudantes, de segunda a quinta-feira (certamente o custume de pegar ônibus nas sextas não era comum entre os estudantes, que preferiam matar aula na praça do bairro), mas Jurandir sempre estaria lá.

Mas Jurandir também tinha seu alvo preferido: os novatos. Era um defensor dos fracos e oprimidos. Seu coração sempre se derretia ao avistar um pobre e perdido estranho, precisando de ajuda e informações.
Mas Jurandir era uma bússola! Um relógio, um mapa, um serviço de atendimento ao consumidor, um guia turístico e ultimamente havia se transformado em um GPRS.

"Oi tudo bem?
-Sempre...
O senhor mora por aqui?
-Moro aqui.
Bom... e o senhor poderia me informar a que horas passa o próximo ônibus para o centro?
-Claro. Mas você não gostaria de entrar e tomar uma xícara de café?"

E lá se ia mais um "estrangeiro" -como Jurandir gostava de chamar os pobres e perdidos estranhos- encantado por um bairro tão acolhedor.

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Em breve falarei mais sobre Jurandir. Só postando esse rascunho pra "entrar em forma" outra vez. Abraços :)